O INFERNO É A SOLIDÃO A guerra dos bastardos, de Ana Paula Maia, é uma novela social, trata do popular, do homem comum e suas aspirações
Luiz Horácio • Rio de Janeiro – RJ
A guerra dos bastardos não é um livro qualquer; Ana Paula Maia não é uma simples escritora, tampouco uma escritora simples, mas também não queira ler o que não está escrito. Onde digo que não é uma escritora simples, por favor, não leia "difícil". Longe disso. Ana Paula Maia é uma escritora/fotógrafa, ou se preferirem, cineasta. Sendo assim, este aprendiz poderia se ater às imagens, lançar mão de Walter Benjamin e propor uma abordagem epistemológica dessas imagens. Poderia... mas não passará disso. Estamos diante de um livro e, como tal, será apreciado. As imagens, a inelutável presença do visível é a autora que nos traz, caberá ao leitor interpretá-las. Porém não deixaremos de lado os aspectos políticos e antropológicos contidos no texto e nas imagens.
A guerra dos bastardos é pródigo em imagens e estas não apresentam a menor novidade, senão meras comprovações da abjeta condição humana. O poeta irlandês William Butler Yeats afirma que "a arte não é mais que uma visão da realidade". E, por isso, busca sem tréguas imagens que reconstruam o mundo. Imagens que sejam também pensamentos; imagens como flores subconscientes e universais. E, assim, Ana Paula distribui um pouco de amor, muito pouco, morte e solidão. Frente à ausência desse amor, frente à implacável desestruturação do ser, os personagens de A guerra dos bastardos se socorrem da melancolia, da sublimação do perdido em combustível para a sobrevivência. A novela de Ana Paula é um grito de alerta, denuncia a cisão entre o ser e a plenitude desse ser, entre a alma e a matéria que a tudo destrói ante a corrida desenfreada em busca do ter. O conflito se estabelece entre realidade e desejo. A realidade como algo obscuro, opressor; o desejo como o amor nunca alcançado.
Há um quê de Dostoiévski na concepção dos personagens e no modo de encarar a inexplicável existência. Os personagens de Ana Paula Maia comprovam que a vida não tem sentido, pois para a vida ter sentido é necessário que se sinta um protagonista. Não é o caso. Enquanto Sartre afirma que "o inferno são os outros", Ana informa ao leitor que o inferno é a solidão. A solidão (eu não disse silêncio), pois os personagens de A guerra... são por demais falantes, mas... não dizem nada. Importante destacar o trabalho de escultora detalhista com que a autora molda seus personagens. Embora a opção pelo universo aparentemente marginal, calma apressado leitor, sei muito bem que é discutível o conceito de marginal, e seus óbvios estereótipos, a autora consegue apresentar personagens convincentes e dotados de personalidade própria. Se têm em comum o desalento, o descaso, a desgraça, também têm em comum o equilíbrio entre suas ações e suas personalidades. Significa dizer que o interno e o externo dos personagens são verossímeis, têm lógica, se completam, fazem sentido.
Nada é gratuito, nada sobra, nada é excesso em A guerra dos bastardos, e a autora aborda o universo dos marginais, dos fracassados, dos sem carteira assinada, dos sobreviventes, dos bastardos do sistema, e para isso não precisa subir o morro: seus bastardos são habitantes da cidade, do asfalto, como se diz aqui no Rio de Janeiro. Para quem lida com estereótipos, fugir desse já é digno de aplausos. Não estigmatiza, se é que me entendem. Voltando a Sartre, em Situations, volume II , "o escritor encontra-se em situação no seu tempo". Traduzindo: o escritor não pode fazer vista grossa frente aos acontecimentos de que é testemunha. Retratar, denunciar o presente, continuando: "Escrevemos para os nossos contemporâneos [...]. Não desejamos vencer o nosso processo em apelação e não sabemos o que fazer duma reabilitação póstuma: é agora e aqui, enquanto vivos, que os processos se perdem ou se ganham".
Quadro realista
Atento leitor, Ana Paula Maia não é uma escritora da moda, não é daquelas que nascem e morrem numa Flip qualquer; Ana Paula Maia nos faz crer numa literatura séria. Ela consegue unir humor e violência com a precisão de Rubem Fonseca e, assim como o consagrado escritor, dá voz aos homens comuns, não apresenta vencidos nem vencedores, tão somente sofredores a deambular pela novela. A autora projeta um quadro realista das injustiças que nos cercam.
Importante não incorrermos no erro de entender A guerra... como uma simples aventura policialesca ou reportagem sobre o submundo, o nosso submundo, vale lembrar. Com atenção e boa vontade, o leitor perceberá uma autora de caráter firmado e espírito reflexivo, à medida que a narrativa retrata o momento atual de nossa existência, o leitor não encontrará sonhos quiméricos, há homens e mulheres comuns decididos a burlar as leis na esperança vã de vencer o infortúnio cotidiano, de vencer um mundo que não os leva em conta.
Queiram ou não, A guerra dos bastardos é uma novela social, trata do popular, do homem comum e suas aspirações, o povo como consciência de uma nação, as desigualdades de oportunidades legitimando condutas fora dos manuais. A sobrevivência e seu peculiar código de conduta. Há um fundo social e honestamente realista na novela de Ana Paula que pode ser lido como uma resposta à nefasta necessidade de heróis. Necessidade essa, ó Brecht perdoai-os, eles são tão alienados e burrinhos!, que infelizmente invadiu nossa realidade.
Como disse no começo, A guerra dos bastardos não é o que parece. Por trás da aparente simplicidade escondem-se as inúmeras possibilidades conferindo à trama a dose exata de estranheza. Estranheza aqui quer dizer fugir ao lugar-comum, quer dizer novidade, força, arrojo, ousadia, isso tudo serve de sinônimo a Ana Paula, essa autora de luz própria, significa dizer que não vale a pena perder seu tempo tentando comparações, Ana é Paula é Maia e ponto final. Mas vamos à trama.
Pagar uma dívida
A guerra dos bastardos é uma novela que não tem o compromisso com a linearidade, composta por várias histórias que vão se entrelaçando e os acontecimentos se repetem narrados pela ótica de personagens diferentes. A estrutura apresenta o narrador em terceira pessoa, este ora participa, ora é apenas narrador. Cabe alertar o leitor para a mudança de narrador. Dimitri, o participante distante, narra a história na primeira pessoa. Mas qual o motivador, o estopim, o foco dessa história? A cobrança de uma dívida. Alguém se apoderou de algo que não lhe pertencia e terá de pagar por isso.
Amadeu, um ator pornô, dá o pontapé inicial desse jogo ao encontrar uma sacola cheia de cocaína. É na tentativa de transformar o achado em grana que encontrará a diversidade de personagens que iluminam A guerra dos bastardos. Eles se mostram na pele de uma boxeadora fracassada, de uma pompoarista que cospe bolas de fogo, de uma produtora manca que usa a prótese para esconder dinheiro e outras cositas más, de ladrões de órgãos e outros seres habitantes da selva da cidade. Se você pensou em personagens caricatos, pode abandonar a idéia. A autora não pesa a mão, é precisa na ourivesaria e faz de A guerra dos bastardos jóia das mais valiosas. Imaginação cravejada de técnica, 18 quilates.
Você dirá que já viu isso, que esse argumento é batido tanto no cinema quanto na literatura. Digamos que em parte você tenha razão e eu lhe pergunto, culto leitor, quantas histórias, quantos livros, quantos filmes, são releituras descaradas de Shakespeare, quantos?
De Ana Paula Maia você pode dizer muitas coisas, entre elas que é jovem, acintosamente bela e talentosa, mas não pode desmerecer essa história revitalizadora de nossa literatura. E aqui outra pergunta, recalcitrante leitor, até quando insistiremos nessa mania de não reconhecer nossos talentos, até quando? Ciúme, inveja, atraso, burrice, o que deflagra essa sórdida prática?
TRECHO • A guerra dos bastardos
Toca levemente seu rosto e pergunta: "Como estou?" Horácio, de olhos arregalados, porque é assim que ele fica todo o tempo, estupefato de horror, responde: "Nem tão mal assim. Pra quem acabou de ser atropelado, você está até mesmo bonitão". Mas ali está um buraco, um aleijão; falta a orelha esquerda. Ele abre sua mochila, apanha um lenço e começa a secar a testa de Amadeu, as bochechas, o queixo, até que ele mesmo segura o lenço e começa a limpar o próprio rosto."É estranho, Horácio." Não completa a frase ao perceber o oco ao lado da cabeça. "Onde tá?", ele alisa o local. "Onde tá ela?", insiste Amadeu. Toca a outra orelha, que está no mesmo lugar. "Minha orelha... a orelha... caiu... onde?"
A nova gritaria de um moribundo de forte pulmão faz o carro parar no meio da rua, impedindo o trânsito. O motorista sai e, abaixado, retira um lenço quadriculado do bolso e desgruda a orelha do farol, tapando a boca para não vomitar. Ele retorna muito agitado para o carro, estende a mão para trás, passa o lenço com a orelha e arranca com o carro antes que um guarda municipal o alcance. "Tome a tua orelha e agora cale essa boca."