SOBRE O LIVRO "A GUERRA DOS BASTARDOS", DE ANA PAULA MAIA ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- PERÍODO 2007/2008

Estadão - Caderno 2 - Setembro / 2008

*artigo sobre livro de ensaio crítico em que meu texto é analisado*

Os novos devem nutrir o desejo de profanar

Contemporâneos, de Beatriz Resende, discute as vozes múltiplas da atual ficção brasileira, presa a uma imobilidade trágica

Francisco Quinteiro Pires

Link da matéria: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080921/not_imp245448,0.php

Beatriz Resende não tem medo de se queimar com o calor da hora. O que ela faz assusta os mais sensíveis e desperta o riso dos incrédulos: prefere caminhar nas brasas do presente, enquanto a crítica literária nacional afunda os pés nas cinzas do passado. "O cânone é mais seguro", diz. Apesar de ter consciência sobre essa segurança dos clássicos, Beatriz corre o risco do erro e experimenta uma "sensação de nudez" em Contemporâneos - Expressões da Literatura Brasileira no Século XXI, um dos primeiros estudos feitos por um especialista conceituado sobre os novos escritores.

Com lançamento no Cinemathèque Jam Club (tel.: 21 3239-0488), às 17 h desta terça, Contemporâneos (Casa da Palavra, 176 págs., R$ 32) constata que a nova literatura brasileira vive a era da multiplicidade: são diferentes expressões de subjetividades. "É o dar voz a novas vozes." Mas existe um traço de união entre os novos escritores: a tragédia. Segundo Beatriz Resende, a tragédia substituiu o drama do século passado. "Com o drama, existe a negociação de uma saída", diz. "Na tragédia, a esperança não existe."

Beatriz Resende classifica Bernardo Carvalho, autor de Nove Noites, como o autor-sintoma da atual literatura. Na obra de Carvalho, a ficção manifesta o "trágico radical". "Sua obra apresenta um profundo sentido político: ela faz a defesa intransigente do ficcional."

O retorno da tragédia, segundo Beatriz, pode resultar em duas situações: na imobilidade ou no desejo profanador. Imobilizado, o escritor mergulha na amargura. Sua alternativa é profanar. Desejo profanador é uma expressão emprestada do filósofo italiano Giorgio Agamben. "Toda obra de arte, para ser importante, tem de ser profanadora, o perigo maior a que um artista pode se expor é a conciliação", explica. O escritor precisa se apropriar do sagrado ou do canônico para provocar a inovação. Os ficcionistas brasileiros atuais, segundo Beatriz, não têm medo de referências, que são incorporadas. "Joca Terron se apropria de modelos e os profana em sua literatura."

Bernardo Carvalho e Joca Reiners Terron, autor de Curva de Rio Sujo, são algumas das apostas de Beatriz Resende, pesquisadora da UFRJ, em Contemporâneos. As outras são Cecília Gianetti (Lugares Que Não Conheço, Pessoas Que Nunca Vi), Paloma Vidal (A Duas Mãos), Santiago Nazarian (Mastigando Humanos), Luiz Schwarcz (Discurso Sobre O Capim), Daniel Galera (Mãos de Cavalo), Maira Parula (Não Feche Seus Olhos Esta Noite) e Ana Paula Maia (A Guerra dos Bastardos).

Além da multiplicidade de vozes, as obras contemporâneas são marcadas pela presentificação e a violência urbana. "Presentificação é diferente do afã pelo novo, que é modernista." A novidade pela novidade é substituída pelo duro trabalho ficcional com a força esmagadora do presente. "O presente é ameaçador, achata o escritor, que pode ficar acorrentado ao real." A presentificação não pode ser confundida com imediatismo. Para Beatriz, das várias narrativas sobre violência, um dos sintomas do foco sobre o presente, vai surgir a brecha da inovação.

A principal dificuldade dos novos é a frágil construção dos personagens. "Os escritores precisam ter esse amadurecimento, a vivência do outro, para criar os personagens, que serão mais bem construídos, à medida que houver a capacidade ficcional de ler o outro." Ao lado de Sérgio Sant?anna, Silviano Santiago é a mais forte referência. "Heranças, último livro de Silviano, é todo centrado na construção de um personagem, Walter", diz. "Ele encara o desafio de fazer o que há de mais difícil na literatura atual."

Em uma das passagens de Contemporâneos, Beatriz cita Flaubert - ele afirmava ser o mergulho na literatura a única forma de suportar a existência. A entrega literária é como uma "orgia perpétua". Além de acreditar nessa função, Beatriz Resende sabe que, no fim, é melhor mostrar a cicatriz das brasas do presente do que os pés sujos pelas cinzas do passado.