Matérias e Artigos I
SOBRE O LIVRO "A GUERRA DOS BASTARDOS", DE ANA PAULA MAIA ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- PERÍODO 2007/2008
Estadão - Caderno 2 - Setembro / 2008
Os novos devem nutrir o desejo de profanar
Contemporâneos, de Beatriz Resende, discute as vozes múltiplas da atual ficção brasileira, presa a uma imobilidade trágica
Francisco Quinteiro Pires
Link da matéria: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080921/not_imp245448,0.php
Beatriz Resende não tem medo de se queimar com o calor da hora. O que ela faz assusta os mais sensíveis e desperta o riso dos incrédulos: prefere caminhar nas brasas do presente, enquanto a crítica literária nacional afunda os pés nas cinzas do passado. "O cânone é mais seguro", diz. Apesar de ter consciência sobre essa segurança dos clássicos, Beatriz corre o risco do erro e experimenta uma "sensação de nudez" em Contemporâneos - Expressões da Literatura Brasileira no Século XXI, um dos primeiros estudos feitos por um especialista conceituado sobre os novos escritores.
Com lançamento no Cinemathèque Jam Club (tel.: 21 3239-0488), às 17 h desta terça, Contemporâneos (Casa da Palavra, 176 págs., R$ 32) constata que a nova literatura brasileira vive a era da multiplicidade: são diferentes expressões de subjetividades. "É o dar voz a novas vozes." Mas existe um traço de união entre os novos escritores: a tragédia. Segundo Beatriz Resende, a tragédia substituiu o drama do século passado. "Com o drama, existe a negociação de uma saída", diz. "Na tragédia, a esperança não existe."
Beatriz Resende classifica Bernardo Carvalho, autor de Nove Noites, como o autor-sintoma da atual literatura. Na obra de Carvalho, a ficção manifesta o "trágico radical". "Sua obra apresenta um profundo sentido político: ela faz a defesa intransigente do ficcional."
O retorno da tragédia, segundo Beatriz, pode resultar em duas situações: na imobilidade ou no desejo profanador. Imobilizado, o escritor mergulha na amargura. Sua alternativa é profanar. Desejo profanador é uma expressão emprestada do filósofo italiano Giorgio Agamben. "Toda obra de arte, para ser importante, tem de ser profanadora, o perigo maior a que um artista pode se expor é a conciliação", explica. O escritor precisa se apropriar do sagrado ou do canônico para provocar a inovação. Os ficcionistas brasileiros atuais, segundo Beatriz, não têm medo de referências, que são incorporadas. "Joca Terron se apropria de modelos e os profana em sua literatura."
Bernardo Carvalho e Joca Reiners Terron, autor de Curva de Rio Sujo, são algumas das apostas de Beatriz Resende, pesquisadora da UFRJ, em Contemporâneos. As outras são Cecília Gianetti (Lugares Que Não Conheço, Pessoas Que Nunca Vi), Paloma Vidal (A Duas Mãos), Santiago Nazarian (Mastigando Humanos), Luiz Schwarcz (Discurso Sobre O Capim), Daniel Galera (Mãos de Cavalo), Maira Parula (Não Feche Seus Olhos Esta Noite) e Ana Paula Maia (A Guerra dos Bastardos).
Além da multiplicidade de vozes, as obras contemporâneas são marcadas pela presentificação e a violência urbana. "Presentificação é diferente do afã pelo novo, que é modernista." A novidade pela novidade é substituída pelo duro trabalho ficcional com a força esmagadora do presente. "O presente é ameaçador, achata o escritor, que pode ficar acorrentado ao real." A presentificação não pode ser confundida com imediatismo. Para Beatriz, das várias narrativas sobre violência, um dos sintomas do foco sobre o presente, vai surgir a brecha da inovação.
A principal dificuldade dos novos é a frágil construção dos personagens. "Os escritores precisam ter esse amadurecimento, a vivência do outro, para criar os personagens, que serão mais bem construídos, à medida que houver a capacidade ficcional de ler o outro." Ao lado de Sérgio Sant?anna, Silviano Santiago é a mais forte referência. "Heranças, último livro de Silviano, é todo centrado na construção de um personagem, Walter", diz. "Ele encara o desafio de fazer o que há de mais difícil na literatura atual."
Em uma das passagens de Contemporâneos, Beatriz cita Flaubert - ele afirmava ser o mergulho na literatura a única forma de suportar a existência. A entrega literária é como uma "orgia perpétua". Além de acreditar nessa função, Beatriz Resende sabe que, no fim, é melhor mostrar a cicatriz das brasas do presente do que os pés sujos pelas cinzas do passado.
Revista Bravo - Julho/2008
http://bravonline.abril.com.br/conteudo/secoes/saideiramateria_290553.shtml
http://gavetadoautor.sites.uol.com.br/videos.html
Jornal do Brasil - Abril 2008
PS: Errata: O livro chama-se A GUERRA DOS BASTARDOS.
Breve, numa livraria perto de você
Jovens escritores produzem trailers cinematográficos para promover lançamentos
Bolívar Torres
Quando disserem por aí que um determinado livro é "coisa de cinema", pode estar preparado para levar a afirmação ao pé da letra. Com o objetivo de incrementar a divulgação de seu primeiro romance, De cabeça baixa (Editora Guarda-chuva), o escritor Flávio Izhaki pôs no YouTube um trailer do livro – exatamente como vemos, antes de uma sessão de cinema, trailers de filmes que vão estrear em breve. Izhaki gravou dramatizações de seu livro, usando atores, trilha sonora e planos cinematográficos, como um preview desses que se vêem nas salas escuras. É um passo adiante numa prática que invadiu os mais diversos espaços audiovisuais – vários exemplos podem ser achados pela internet (experimente digitar "Trailer" e "livro" no YouTube). O trailer do romance A vingança dos bastardos (Língua Geral), de Ana Paula Maia, fez tanto sucesso que chegou a ser exibido, para valer, nos cinemas.
– Quis fazer uma encenação do romance – esclarece o carioca Izhaki. – É um trailer do mesmo jeito que se faz no cinema. Não apenas fotos ou arte de imagens. É um resumo do livro, como se fosse um curta-metragem.
O escritor diz que a realização de vídeos para divulgar livros ainda é um processo em formação. Ele acredita que sua investida no domínio envolveu uma certa dose de experimentação.
– É uma linguagem que está começando – avalia. – Então, por enquanto, todos ficam tateando.
Primeira autora brasileira a promover um livro com um trailer dramatizado, a carioca Ana Paula Maia adotou um procedimento diferente. Para divulgar A vingança dos bastardos, seu segundo romance, preferiu a técnica da fotomontagem. Realizado pela produtora Crepúsculo (ler mais no quadro abaixo), o vídeo curto, de pouco mais de um minuto, contenta-se em transpor para a tela o caráter violento do romance, que trata do universo da cultura pulp. A história, que abriga boxeadores endividados, atores pornôs decadentes, ladrões de órgãos e outros personagens saídos diretamente do submundo, ficou representada por uma sucessão de imagens de um homem num apartamento repleto poças de sangue e pedaços de corpos humanos.
– O vídeo saiu do jeito que podia sair – diz Ana. – Se usasse atores, talvez ficasse falso. Quanto mais simples, menor a chance de estragar.
Depois de chamar a atenção no YouTube, o vídeo acabou sendo exibido nas salas de Rio e de São Paulo. Mesmo assim, Ana Paula não acredita que a boa repercussão tenha alavancado as vendas do livro.
– Virou um caso de repercussão interessante – diz. – A relação do cinema com a literatura é muito próxima. Acredito que o trailer de livro é uma tendência que vai crescer cada vez mais.
De cabeça baixa, o livro de Flávio Izhaki, narra a história de Felipe, um jovem romancista desiludido. Contando com poucos recursos, o autor buscou a ajuda da cineasta Débora Pessanha, que dirigiu o vídeo com uma equipe composta por estudantes do Curso de Rádio e TV da UFRJ.
– Foi difícil resumir o livro em um vídeo de dois minutos – admite Izhaki. – O meu romance usa metalinguagem e trata de um assunto muito literário.
O maior risco, no entanto, foi dar ao leitor uma imagem pré-concebida de sua própria obra. No trailer promovido por Izhaki, os personagens literários se apresentam em carne e osso, como numa adaptação cinematográfica avant la lettre. Com isso, poderia decepcionar os leitores que preferem imaginar por conta própria as narrativas que lêem.
– A solução foi escolher atores com físico diferente da descrição dos personagens e mostrar ao espectador que aquilo era uma representação, não uma adaptação. Como se fosse aperitivo para o leitor.
[ 27/04/2008 ]
Jornal do Brasil - Janeiro 2008
Adeus, egotrip!
"Costumo dizer - e não é de brincadeira, ou não totalmente - que a internet vai salvar a literatura. Não como espaço para publicação ou autopublicação, mas como caixa de ressonância, arena de debates, ponto de encontro de admiradores de um determinado autor ou escola". A previsão é de Sergio Rodrigues, escritor, jornalista e autor do blog TodoProsa.Um dos mais visitados por quem busca novidades literárias online, o blog de Sérgio reflete uma mudança no perfil de uso da ferramenta: cada vez mais distantes da verborragia e confissão inicial eles suscitam acalorados debates, servem como agenda cultural, dão furos jornalísticos e ainda publicam textos inéditos.
Desde que começaram a ser criados no Brasil, entre 1999 e 2000 - quando ainda eram páginas simples sem vídeos e com poucos links e fotos - os blogs já foram taxados de diários virtuais, salvadores da democracia online facilitando o acesso à posse da palavra, espaço de experimentação e egotrips. Autores foram pinçados na teia virtual e alçados a escritores sem sequer haver escrito ou publicado em papel. Amizades literárias surgiram e foram seladas em chats e e-mails. Editores, atentos ao sucesso de comunidades do Orkut e blogs coletivos, organizaram volumes como Wunderblogs (Barracuda) e Blog de papel (Genesi).
A blogosfera se reinventa
Passada a euforia da novidade (já devidamente substituída por podcasts e vídeos online) a blogosfera sobrevive competindo com a grande imprensa e reinventando-se. E poucos parecem duvidar: merecem sua parcela de crédito pelo bom momento literário atual.
- Nunca vi tanta gente escrevendo tanto, trocando palavras, cartas e idéias - opina Marcelino Freire, autor do Eraodito. - Já ouvi vários casos de pessoas que leram o blog e foram buscar os livros que eu comento por lá.
Se antes o blog era uma ferramenta de fácil publicação tomada de assalto por novos escritores que queriam testar a recepção de seus textos, os mais acessados de hoje são aqueles que optam por conjugar informação, comentário e debate. Como o Eraodito, que contabiliza orgulhosos 300 mil acessos por mês. Além de dicas de livros, o blog funciona como agenda literária atualizada diariamente com palestras, seminários, cursos e encontros. Nesses eventos, aliás, Marcelino colhe material especial para atualizar sua página.
- Recebo e-mails de lançamentos e fofocas literárias mas posto muita coisa ouvida em mesa de bar, com a devida autorização, claro - confessa. - Já dei inclusive alguns furos, como o escritor André Laurentino que descobriu ser um dos convidados na última Flip no Eraodito.
O tom jornalístico - com uma liberdade de letra e assunto de quem não passa por edição - também faz parte da fórmula do TodoProsa.
- Cabe muita coisa no blog, desde textos ficcionais até pequenas pensatas, além, claro, de resenhas e notícias - conta Sérgio.
Diários virtuais em baixa
Com a popularidade dos cliques, os autores dos blogs começam a receber dezenas de e-mails em busca de espaço: são lançamentos de livros, comentários das obras e até mesmo originais que solicitam avaliação. Em contrapartida, os diários virtuais são cada vez mais escassos, perdidos no desinteresse de um discurso umbiguista ou deixados de lado por escritores que ganharam os livros em papel e detestam o rótulo de blogueiros. A rejeição, confessa um deles, (que pede para não ser identificado) é conhecida como "síndrome Los Hermanos": "a banda que ganhou muito dinheiro com Ana Julia mas se recusa a tocar a música nos shows".
Alguns deles viram os textos esgotarem-se das gavetas (ou das CPUs), outros cansaram de ler os comentários sobre o texto ou, como Marcelino Freire, perderam a paciência de exercitar-se no blog e "aparecer de pijama na sala dos outros". Ana Paula Maia é exceção à regra, e mantém três blogs: em dois há novelas literárias mas é no Killing Travis que Ana Paula confessa-se, misturando experiências pessoais com trechos inéditos de livros. Mas faz questão de ressaltar: lá não faz literatura.
- O blog foi lançado para que eu pudesse escrever sem compromisso após a publicação de meu romance A guerra dos bastardos - lembra. -Depois parti para os folhetins pulp. Mas na internet o leitor não influencia meus textos. Meu processo criativo está bem seguro no alto de uma torre.
Com o esvaziamento dos blogs como ferramentas de publicação de textos in progress parece ter ficado para trás também as tentativas de classificar como movimento "uma literatura blogueira". É o que defende a crítica literária Beatriz Resende.
- Ana Paula Maia, Marcelino Freire e Santiago Nazarian circulam pelos mesmos botequins do ciberespaço e fazem uma literatura completamente diferente uns dos outros - afirma. - Costumo dizer que a multiplicidade é a grande característica da produção literária contemporânea.
Se as notícias são boas no reino literário digital, ainda resta espaço para reivindicações. Beatriz acredita que a crítica deveria usar mais o espaço virtual. Marcelo Moutinho, autor de um blog que mistura samba, cinema e livros, acha que a movimentação entre tela e livrarias deveria ser mais intensa.
- Ainda há um grande hiato entre o público que nos lê na internet e o público que efetivamente compra nossos livros - constata Moutinho. - Não sei se a questão financeira pesa, mas acho que é preciso mover o público virtual para as livrarias.
[ 26/01/2008 ]
Rascunho - Jornal de Literatura - Janeiro/ 2008.
O INFERNO É A SOLIDÃO A guerra dos bastardos, de Ana Paula Maia, é uma novela social, trata do popular, do homem comum e suas aspirações
Luiz Horácio • Rio de Janeiro – RJ
A guerra dos bastardos não é um livro qualquer; Ana Paula Maia não é uma simples escritora, tampouco uma escritora simples, mas também não queira ler o que não está escrito. Onde digo que não é uma escritora simples, por favor, não leia "difícil". Longe disso. Ana Paula Maia é uma escritora/fotógrafa, ou se preferirem, cineasta. Sendo assim, este aprendiz poderia se ater às imagens, lançar mão de Walter Benjamin e propor uma abordagem epistemológica dessas imagens. Poderia... mas não passará disso. Estamos diante de um livro e, como tal, será apreciado. As imagens, a inelutável presença do visível é a autora que nos traz, caberá ao leitor interpretá-las. Porém não deixaremos de lado os aspectos políticos e antropológicos contidos no texto e nas imagens.
A guerra dos bastardos é pródigo em imagens e estas não apresentam a menor novidade, senão meras comprovações da abjeta condição humana. O poeta irlandês William Butler Yeats afirma que "a arte não é mais que uma visão da realidade". E, por isso, busca sem tréguas imagens que reconstruam o mundo. Imagens que sejam também pensamentos; imagens como flores subconscientes e universais. E, assim, Ana Paula distribui um pouco de amor, muito pouco, morte e solidão. Frente à ausência desse amor, frente à implacável desestruturação do ser, os personagens de A guerra dos bastardos se socorrem da melancolia, da sublimação do perdido em combustível para a sobrevivência. A novela de Ana Paula é um grito de alerta, denuncia a cisão entre o ser e a plenitude desse ser, entre a alma e a matéria que a tudo destrói ante a corrida desenfreada em busca do ter. O conflito se estabelece entre realidade e desejo. A realidade como algo obscuro, opressor; o desejo como o amor nunca alcançado.
Há um quê de Dostoiévski na concepção dos personagens e no modo de encarar a inexplicável existência. Os personagens de Ana Paula Maia comprovam que a vida não tem sentido, pois para a vida ter sentido é necessário que se sinta um protagonista. Não é o caso. Enquanto Sartre afirma que "o inferno são os outros", Ana informa ao leitor que o inferno é a solidão. A solidão (eu não disse silêncio), pois os personagens de A guerra... são por demais falantes, mas... não dizem nada. Importante destacar o trabalho de escultora detalhista com que a autora molda seus personagens. Embora a opção pelo universo aparentemente marginal, calma apressado leitor, sei muito bem que é discutível o conceito de marginal, e seus óbvios estereótipos, a autora consegue apresentar personagens convincentes e dotados de personalidade própria. Se têm em comum o desalento, o descaso, a desgraça, também têm em comum o equilíbrio entre suas ações e suas personalidades. Significa dizer que o interno e o externo dos personagens são verossímeis, têm lógica, se completam, fazem sentido.
Nada é gratuito, nada sobra, nada é excesso em A guerra dos bastardos, e a autora aborda o universo dos marginais, dos fracassados, dos sem carteira assinada, dos sobreviventes, dos bastardos do sistema, e para isso não precisa subir o morro: seus bastardos são habitantes da cidade, do asfalto, como se diz aqui no Rio de Janeiro. Para quem lida com estereótipos, fugir desse já é digno de aplausos. Não estigmatiza, se é que me entendem. Voltando a Sartre, em Situations, volume II , "o escritor encontra-se em situação no seu tempo". Traduzindo: o escritor não pode fazer vista grossa frente aos acontecimentos de que é testemunha. Retratar, denunciar o presente, continuando: "Escrevemos para os nossos contemporâneos [...]. Não desejamos vencer o nosso processo em apelação e não sabemos o que fazer duma reabilitação póstuma: é agora e aqui, enquanto vivos, que os processos se perdem ou se ganham".
Quadro realista
Atento leitor, Ana Paula Maia não é uma escritora da moda, não é daquelas que nascem e morrem numa Flip qualquer; Ana Paula Maia nos faz crer numa literatura séria. Ela consegue unir humor e violência com a precisão de Rubem Fonseca e, assim como o consagrado escritor, dá voz aos homens comuns, não apresenta vencidos nem vencedores, tão somente sofredores a deambular pela novela. A autora projeta um quadro realista das injustiças que nos cercam.
Importante não incorrermos no erro de entender A guerra... como uma simples aventura policialesca ou reportagem sobre o submundo, o nosso submundo, vale lembrar. Com atenção e boa vontade, o leitor perceberá uma autora de caráter firmado e espírito reflexivo, à medida que a narrativa retrata o momento atual de nossa existência, o leitor não encontrará sonhos quiméricos, há homens e mulheres comuns decididos a burlar as leis na esperança vã de vencer o infortúnio cotidiano, de vencer um mundo que não os leva em conta.
Queiram ou não, A guerra dos bastardos é uma novela social, trata do popular, do homem comum e suas aspirações, o povo como consciência de uma nação, as desigualdades de oportunidades legitimando condutas fora dos manuais. A sobrevivência e seu peculiar código de conduta. Há um fundo social e honestamente realista na novela de Ana Paula que pode ser lido como uma resposta à nefasta necessidade de heróis. Necessidade essa, ó Brecht perdoai-os, eles são tão alienados e burrinhos!, que infelizmente invadiu nossa realidade.
Como disse no começo, A guerra dos bastardos não é o que parece. Por trás da aparente simplicidade escondem-se as inúmeras possibilidades conferindo à trama a dose exata de estranheza. Estranheza aqui quer dizer fugir ao lugar-comum, quer dizer novidade, força, arrojo, ousadia, isso tudo serve de sinônimo a Ana Paula, essa autora de luz própria, significa dizer que não vale a pena perder seu tempo tentando comparações, Ana é Paula é Maia e ponto final. Mas vamos à trama.
Pagar uma dívida
A guerra dos bastardos é uma novela que não tem o compromisso com a linearidade, composta por várias histórias que vão se entrelaçando e os acontecimentos se repetem narrados pela ótica de personagens diferentes. A estrutura apresenta o narrador em terceira pessoa, este ora participa, ora é apenas narrador. Cabe alertar o leitor para a mudança de narrador. Dimitri, o participante distante, narra a história na primeira pessoa. Mas qual o motivador, o estopim, o foco dessa história? A cobrança de uma dívida. Alguém se apoderou de algo que não lhe pertencia e terá de pagar por isso.
Amadeu, um ator pornô, dá o pontapé inicial desse jogo ao encontrar uma sacola cheia de cocaína. É na tentativa de transformar o achado em grana que encontrará a diversidade de personagens que iluminam A guerra dos bastardos. Eles se mostram na pele de uma boxeadora fracassada, de uma pompoarista que cospe bolas de fogo, de uma produtora manca que usa a prótese para esconder dinheiro e outras cositas más, de ladrões de órgãos e outros seres habitantes da selva da cidade. Se você pensou em personagens caricatos, pode abandonar a idéia. A autora não pesa a mão, é precisa na ourivesaria e faz de A guerra dos bastardos jóia das mais valiosas. Imaginação cravejada de técnica, 18 quilates.
Você dirá que já viu isso, que esse argumento é batido tanto no cinema quanto na literatura. Digamos que em parte você tenha razão e eu lhe pergunto, culto leitor, quantas histórias, quantos livros, quantos filmes, são releituras descaradas de Shakespeare, quantos?
De Ana Paula Maia você pode dizer muitas coisas, entre elas que é jovem, acintosamente bela e talentosa, mas não pode desmerecer essa história revitalizadora de nossa literatura. E aqui outra pergunta, recalcitrante leitor, até quando insistiremos nessa mania de não reconhecer nossos talentos, até quando? Ciúme, inveja, atraso, burrice, o que deflagra essa sórdida prática?
TRECHO • A guerra dos bastardos
Toca levemente seu rosto e pergunta: "Como estou?" Horácio, de olhos arregalados, porque é assim que ele fica todo o tempo, estupefato de horror, responde: "Nem tão mal assim. Pra quem acabou de ser atropelado, você está até mesmo bonitão". Mas ali está um buraco, um aleijão; falta a orelha esquerda. Ele abre sua mochila, apanha um lenço e começa a secar a testa de Amadeu, as bochechas, o queixo, até que ele mesmo segura o lenço e começa a limpar o próprio rosto."É estranho, Horácio." Não completa a frase ao perceber o oco ao lado da cabeça. "Onde tá?", ele alisa o local. "Onde tá ela?", insiste Amadeu. Toca a outra orelha, que está no mesmo lugar. "Minha orelha... a orelha... caiu... onde?"
A nova gritaria de um moribundo de forte pulmão faz o carro parar no meio da rua, impedindo o trânsito. O motorista sai e, abaixado, retira um lenço quadriculado do bolso e desgruda a orelha do farol, tapando a boca para não vomitar. Ele retorna muito agitado para o carro, estende a mão para trás, passa o lenço com a orelha e arranca com o carro antes que um guarda municipal o alcance. "Tome a tua orelha e agora cale essa boca."
Indicação de "A Guerra dos Bastardos" - Folha de São Paulo - Dezembro de 2007
Livros para as férias vão de Bukowski a "Moby Dick"
Da ficção à história, cinco pesos pesados dão indicações para verão
Folha de São Paulo de 16/12/07
DA REDAÇÃO
A CONVITE DA Folha, cinco pesos pesados de história, literatura, teatro e crítica indicam leituras para o verão. O curador-chefe do Masp, Teixeira Coelho, sugere o clássico do policial belga, o eletrizante Georges Simenon -"não se pode parar de ler". Já o dramaturgo Mário Bortolotto aposta as fichas no Charles Bukowski de "À Toa em San Pedro", "para ler bebendo cerveja à beira-mar". O colunista da Folha Moacyr Scliar indica "Moby Dick", de Melville. Beatriz Resende destaca "Amor, de Novo", da Nobel de Literatura deste ano, Doris Lessing; Mary del Priore, no embalo dos 200 anos da fuga de d. João 6º de Portugal, vai de "Carlota Joaquina na Corte do Brasil".
por Beatriz Resende
Jovens autores, velhas questões
O Dia Mastroianni
(ed. Agir), de João Paulo Cuenca - Básico como filtro solar. Narrativa de erudita vagabundagem pelo Rio
Lugares Que Não Conheço, Pessoas Que Nunca Vi
(Ediouro), de Cecília Giannetti - Uma das mais fortes narrativas de jovem autor atual. Delirante
Amor, de Novo
(Cia. das Letras), de Doris Lessing - Pós Nobel, vale retomá-la, embora "O Carnê Dourado" me pareça mais importante
A Vida Como Ela É...
(ed. Agir), de Nelson Rodrigues - Anos depois, as histórias têm inusitado humor
Sábado
(Cia. das Letras), de Ian McEwan - Um dos maiores ficcionistas atuais, tão bom quanto Coetzee. Ainda sugeriria "Reparação"
Ariel
(ed. Verus), de Sylvia Plath - Para sorver aos poucos, cotejando original e tradução. Beleza vence tristeza
A Guerra dos Bastardos
(ed. Língua Geral), de Ana Paula Maia - Periferia é bem mais próxima do que imagina nossa vã filosofia
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/indices/inde16122007.htm
Programa Livro Aberto / Julho 2007
O Globo Online / Julho 2007
A guerra de Ana Paula Maia
A Guerra dos Bastardos
Ana Paula Maia
Ed. Língua Geral
R$ 34,00
Bang!Bang! - Mocinha saí com romance a tiracolo. A fumaça que sobe dos disparos e o estrago medem o calibre empunhado pela Mocinha - Lili Carabina da literatura. A agilidade narrativa, a fluência da escrita e os diálogos cortantes podem dar idéia imediata de quem são os personagens. Ana Paula Maia com sua camiseta e sua calcinha de algodão, tendo no coldre munição para vários duelos com a literatura, não arreda pé do terreno tipicamente masculino onde escolheu meter o bedelho - e sem o afrescalhamento da literatura mocinha, sem a postura barbie, nem a afetação das patricinhas que descolam de suas narinas pedras de pó e ouro.
A Guerra dos Bastardos - um chocante convite para um mundo hiper-realista, não possuí somente desgraça, existem anjos tatuados por dragões e purificados pelo fogo: Gina Trevisan. A mulher que atravessa o inferno, como um Orfeu feminino, lutando com os próprios punhos contra demônios e demonizações. Talvez esteja aí o sentido de toda a tragédia ali descrita : não há como se salvar, mesmo os personagens tendo o destino anunciado na primeira linha.
Ana Paula Maia toca com rédea curta e visita personagens locados em adjacências próximas como Edgar Wilson, que aprendeu o riscado ao sul do país, num aprendizado iniciação como todo (anti-)herói precisa para nos convencer de sua estranha humanidade. Na passarela cenas de boxe,
assassinatos e a danação dos personagens, ardendo na fogueira das palavras e sob o sol incandescente que teima em torrar as consciências.
O romance se desenrola com descrições que beiram o cinematográfico - alguns personagens parecem ter sido escritos para o cinema pela economia utilizada para compô-los, o que poderia comprometer a construção dos próprios personagens - mas, a ação parece salvá-los, e dentro do dinamismo narrativo, são levados pelas hábeis mãos da autora para desenlaces formidáveis.
Talvez só exista um pequeno deslize em todo o romance: a moral que condena uma casta baixa como se os grandes não participassem dessa degeneração - isso contribuí para uma certa virada de nariz do leitor menos ordinário, que não acredita nesses esquematismos da literatura realista,devedora de impostos ao naturalismo/realismo tão explorado pela gama de autores contemporâneos.
[Por Mariel Reis - Blog Paralelos O Globo Online]
Revista Cult - Edição/Junho de 2007
SELEÇÃO CULT LIVRO
Humilhados e ofendidos
"Aos degenerados, desmedidos e renegados", é a dedicatória de Ana Paula Maia no seu segundo romance, A guerra dos bastardos, o que é uma provocação e uma tomada de posição. Os humilhados e ofendidos do seu universo lutam pela sobrevivência e vivem no chamado andar de baixo da sociedade. Mas não há tratamento sensacionalista ou paternalista desse povo na sua ficção. A ação é desencadeada pelo achado que um ator pornô em decadência faz, de uma sacola cheia de cocaína, no escritório do patrão. Tentando "passar" a droga, ele tromba, esbarra ou tropeça num elenco de personagens que mostra a força da autora. Ana Paula escreve como uma veterana, mas com o vigor de uma estreante. Vale a pena seguir os próximos passos.
Folha de São Paulo - Ilustrada - 12/05/2007
São Paulo, sábado, 12 de maio de 2007
Livros/antigeração
"Independentes", novos rejeitam rótulo
Autores ressaltam mudanças criadas pela internet, dizem que é mais fácil publicar e preferem seguir caminhos individuais
Nova safra de escritores usa a rede e se distancia da tentativa de formação de "movimentos", como a chamada Geração 90
Veronica Stigger, Santiago Nazarian, Carola Saavedra e Ana Paula Maia, escritores que se reuniram na Folha para discutir suas influências, o uso da internet e a luta para entrar no mercado
MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL
"Fobia da influência". Essa é uma boa definição para uma nova geração de autores que começa a ser adotada pelas grandes editoras. Ao contrário do grupo que os precedeu, o conjunto de novos escritores está em sua maior parte buscando caminhos independentes, rejeita grandes influências e consegue mais visibilidade.
A explosão dos blogs e o barateamento do custo de publicação são duas razões dessa maior exposição dos novos. Há um grande número de nomes aparecendo e a dificuldade, agora, parece ser o processo de amadurecimento.
"Pelo número, fica evidente que nunca se publicou tanto", diz Daniel Galera, que ficou conhecido como o criador da microeditora Livros do Mal e é uma espécie de símbolo do jovem que conseguiu sair da produção caseira para uma grande editora. Para ele, nunca foi tão fácil publicar. "Hoje há uma tecnologia mais acessível e barata, com amigos tu consegue resolver", disse à Folha.
Joca Reiners Terron, que também ficou conhecido por uma pequena editora alternativa, a Ciência do Acidente, concorda. "Tudo é muito mais barato, está ao alcance das mãos, as pessoas podem produzir seus livros sozinhas e dá para fazer a autodivulgação." Ao contrário dos anos 90, que viu pelo menos uma tentativa de movimento em torno da chamada Geração 90 [leia na página E6], os nomes atuais evitam classificação. "Eu me sinto parte da mesma fase [da Geração 90]", diz Galera, 27.
Cecilia Giannetti, colunista da Folha e autora que vai publicar seu primeiro romance neste ano, é mais incisiva: "Para os escritores, esse debate [geracional] atrapalha, não gosto de procurar marcas iguais".
Outra força para os novos é a internet. "Blog nem existia, publicar na internet já era notícia e isso nos ajudou", diz Galera.
Daniel Pellizzari, que foi sócio de editora de Galera, concorda: "Já tínhamos público formado, isso foi importante para as editoras grandes, elas estão com um olhar mais atento".
Giannetti também acha que a internet ajudou. "Hoje é mais fácil, o editor conta com novos métodos de filtragem como a internet. O pessoal das antigas ainda manda material impresso e encadernado. Agora, se chega por email, depois de três páginas você [o editor] já pode ter uma idéia".
Para estimular o debate, a Folha reuniu em São Paulo quatro jovens escritores representativos dessa nova safra para falar sobre o que os une (ou separa), influências, internet e a batalha de quem tenta entrar no mercado. Foram convidados apenas autores de prosa: Carola Saavedra, Veronica Stigger, Santiago Nazarian e Ana Paula Maia.
FOLHA - É possível hoje falar em uma nova geração de escritores? Existem pontos em comum ou de ruptura com os autores que já estão consolidados no mercado editorial?
SANTIAGO NAZARIAN - É bobagem falar de geração, mas acho também bobagem desprezar totalmente, falar que não existe. Quem tem idades próximas, cresceu nos anos 80, sofreu muitas influências parecidas. Isso acaba se manifestando de alguma forma na literatura. Mas ao mesmo tempo acredito que todo autor procure alguma voz própria. A escrita tem muito a ver com o individualismo, é uma atividade supersolitária. Acho que são inevitáveis alguns traços em comum, principalmente nos temas. Não tanto na linguagem ou no estilo.
ANA PAULA MAIA - Acho que não há influência de um autor ou de um grupo de autores. Posso dizer que tenho uma influência muito grande da cultura pop, do desenho animado "Caverna do Dragão", das novelas das oito... Eu me lembro que assistia a "A Pantera Cor-de-Rosa" tomando mamadeira. Cresci assistindo filmes de Jerry Lewis, de Elvis Presley, consumindo rock dos anos 80.
CAROLA SAAVEDRA - Falar em influência é muito difícil, até porque muitas das influências que tive funcionaram de forma inconsciente. É difícil falar de uma geração, porque as pessoas estão escrevendo em linhas diferentes. Posso falar do que estou procurando. Me interessa a literatura como processo, a estrutura da narrativa. Trabalhar com isso, mais do que contar uma história. Para mim foram muito importantes autores hispano-americanos, chilenos, espanhóis. O Roberto Bolaño foi muito importante, o César Aira e o Ricardo Piglia.
FOLHA - E quanto ao gênero? O romance policial e a violência parecem ter influenciado os autores da geração anterior...
SANTIAGO NAZARIAN - Gosto mais de mistério e horror do que de policial. Acho que os meus quatro livros são muito diferentes entre si. Em "A Morte Sem Nome", queria fazer um livro exagerado, pretensioso. Quando eu cheguei no quarto livro, "Mastigando Humanos", falei: agora é hora de eu tentar algo que seja literatura e que ao mesmo tempo possa ser divertido. Foi um pouco assim que mudou a minha posição quanto à literatura. Publiquei o primeiro livro com 25, agora estou me formando e ainda espero que continue me formando por um bom tempo, eu não quero estacionar.
VERONICA STIGGER - Concordo com a Ana Paula, acabamos sendo influenciados por tudo o que a gente vê e lê, por tudo o que se assiste na televisão, no cinema etc. No meu caso, acho que fui muito influenciada pela minha tese. Tenho uma "vida dupla". Dou aula de estética e história da arte, modernismo. Meus dois livros foram feitos ao mesmo tempo em que eu estava fazendo a pesquisa de doutorado, sobre arte, mito e rito na modernidade. Vejo os dois livros como vestígios das leituras que fiz para a tese. No primeiro, vejo a construção dos personagens de uma forma meio mítica. "Gran Cabaret Demenzial" foi gestado em Roma, onde fui estudar Mondrian, Malevitch, Duchamp... Aqueles manifestos: dadaístas, surrealistas, o futurismo italiano, o futurismo russo. Estudei como se organizavam aquelas "soirées".
Daí vem o nome "Gran Cabaret Demenzial". Meu livro, estruturalmente falando, tem um pouco dessas noitadas. Vejo todos aqueles textos como se fossem contos, que vão adquirindo uma forma de poema e até de uma peça.
ANA PAULA MAIA - Gostar de escrever sobre violência é mais por vivência. Fui criada no subúrbio, no meio de matadores. Desde pequena conheci os dois lados da cidade. Meu pai tinha um bar, a gente tinha que trabalhar lá. Nos fins de semana se juntavam todos os matadores. Eram gente boa, pais de família... E os homens têm um diálogo maravilhoso. Eles conversando informalmente é muito divertido. Só reproduzo. Mas meu primeiro romance não tem nada disso. É um romance burguesão.
CAROLA SAAVEDRA - Estou falando de um outro mundo. "Toda Terça" é um livro que trata em parte da experiência do estrangeiro, da Alemanha, como lidar com a dificuldade da comunicação. A respeito do estrangeiro, do preconceito. Também do preconceito ao contrário, da idealização da América Latina ou de parte da África ou da Ásia, como um Eldorado mítico. E como funcionam essas relações, essas tentativas de comunicação. O personagem namora uma menina que é antropóloga, então, através desses personagens, também tem um pouco essa tentativa de enxergar o outro. Estou falando da identidade do sujeito também, porque uma parte é com o Javier e tem a outra parte que é com o psicanalista. A personagem está construindo uma identidade artificialmente. Roubando a história de outras pessoas.
FOLHA - O que vocês acham da internet, dos blogs?
ANA PAULA MAIA - Eu escrevo um folhetim na internet. O tamanho de um capítulo é o tamanho de um "post" de um blog.
SANTIAGO NAZARIAN - Tenho uma visão um pouco diferente. Vejo o meu blog como um meio de divulgar os livros. Não faço literatura no blog. Acho importante ter esse mural, para as pessoas saberem tua opinião sobre determinado ponto de vista, coisa de formador de opinião mesmo.
FOLHA - Ser escritor está na moda?
SANTIAGO NAZARIAN - Acho que já teve um boom maior, já passou. Surgiu muito com a história do (Daniel) Galera, a Clarah Averbuck estourando no blog, o projeto (do livro) "Parati para Mim". Isso fez as editoras apostarem em novos autores, até 2005, daí perceberam que não rendia tanto assim em termos de vendas, e a coisa apaziguou um pouco.
CAROLA SAAVEDRA - A minha impressão é que tem um interesse, sim, das editoras grandes também, por novos autores. Eles estão procurando.
ANA PAULA MAIA - Eles sempre têm esse discurso, estamos procurando. Daqui a 20 anos vão dizer a mesma coisa.
FOLHA - Com os custos menores, não há uma menor dependência das editores grandes? Antes só havia as grandes, hoje há uma miríade de editoras menores...
CAROLA SAAVEDRA - Só que me parece que tem um ponto que é muito difícil de ultrapassar. É relativamente fácil você publicar por uma editora pequena, mas sair dali para uma editora maior...
VERONICA STIGGER - Para mim, o segundo livro foi mais difícil de fazer, mas não por questões de mercado. Eu lancei o primeiro livro aos 30 anos, ou seja, levei a a vida toda para escrever. Para o segundo, tive três anos...
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Colaborou MANUEL DA COSTA PINTO, colunista da Folha
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Jornal O Globo - Prosa&Verso - 05/05/2007
“Meus pesadelos me mantêm escrevendo”
Autora de “A Guerra dos bastardos” diz que quanto mais o amor entra em jogo, mais violento se torna o seu texto.
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[matéria feita por Miguel Conde]
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Na lista de influências de Ana Paula Maia cabem Dostoievski e Charles Bronson. E também Henry Miller, Júlio Verne, Creedence, os quadrinhos da Marvel. Entre outros tantos nomes que ela menciona, o de Quentin Tarantino é o mais __ o único? __ previsível. Como os filmes do diretor americano, “A Guerra dos Bastardos” (Língua Geral) incorpora e renova convenções do gêneros como o pulp, o folhetim, o terror B. Dessa mistura de referências, a carioca Ana Paula Maia, nascida em 1977, emerge com estilo próprio, marcado ao mesmo tempo pelo excesso e pela auto-ironia evidentes já no título de seus dois livros anteriores (publicados na Internet), os folhetins pulps “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos” e “Barbudos cretinos e suas histórias canalhas”. Seu primeiro romance, O habitante das falhas subterrâneas” (7 Letras) foi lançado em 2003, quatro anos depois de uma crise de estafa que a fez com que ela começasse a dedicar-se a literatura. Se Ana Paula, como ela mesma diz, escreve porque tem muitos pesadelos, sua escrita no entanto é mais divertida do que apavorante. A violência dessas “histórias de amor” como ela as define, está mais próxima daquela paródica, pop, de filmes como “Kill Bill” e “Cães de aluguel” do que daquela aterradora e concisa dos contos de Rubem Fonseca. Disponível no youtube, o ótimo “trailler” do livro, que em breve será também exibido nos cinemas, dá melhor do que qualquer resenha uma idéia do tom de “A Guerra dos bastardos”: http://bastardos.notlong.com.
Entrevista
Ana Paula Maia
O GLOBO: Embora muito violento, seu livro é narrado numa forma que, em alguns momentos, sugere uma autoparódia, um olhar humorístico sobre o tom pulp da história. Você concorda?
ANA PAULA MAIA: Sim. Às vezes a violência do texto chega a tons absurdos e neste instante é inevitável não usar uma certa dose de humor negro. Mas tenho muito cuidado com essa dose de humor, para não tirar a credibilidade do texto, a seriedade do universo que trato, dos personagens e da história. Em geral, meus narradores, são sujeitos mau humorados. Sofrem do fígado. São um tanto amargos. É assim com o Ariel Esperanto, narrador do meu primeiro romance, e é assim com o Dimitri Callaros, narrador de A Guerra dos Bastardos. Os personagens não são maus, eles são psicóticos, esquizofrênicos. Dentro de seu universo, fazem um julgamento moral e de valores diferente do nosso.
O GLOBO: Este mundo de bastardos criado por você te parece semelhante à vida real, no Brasil? Ou é mais mesmo uma citação, à Tarantino, de um certo gênero literário e cinematográfico?
ANA PAULA MAIA: Eu me baseio o mínimo possível na vida real. Ela me sugere algumas histórias e possibilidades, e com isso, eu transformo em ficção. E é sobre a ficção que me debruço de verdade, pois é na ficção que encontro as possibilidades infinitas para fazer o que quero. Gosto de escrever diálogos, por exemplo. Eles dão liberdade aos personagens, pois você pode ler a história sob a ótica do autor ou dos personagens. Quando eles começam a falar, eu entendo melhor com o que estou lidando e onde estou pisando. Tenho muita influência do cinema, porém ao escrever um romance, eu sei que estou tratando de literatura e não de um roteiro. Gosto da retórica que cabe num texto. Mas reconheço que uma história bem escrita, que envolve o leitor e com muita ação externa ao personagem, sempre nos faz pensar em cinema. Histórias devem ser bem contadas. No cinema, na literatura, no teatro, na música, ao pé do ouvido, enfim... É nisto que eu penso: Quero contar uma história. Quero contá-la da melhor maneira possível.
O GLOBO: Se não estou enganado, você disse uma vez que todos seus livros são histórias de amor. É isso mesmo? Poderia explicar?
ANA PAULA MAIA: Claro que são. Quanto mais amor em jogo, mais violento o texto. A válvula propulsora de A Guerra dos Bastardos é o amor. Uma necessidade de prová-lo ou de retê-lo. Tudo é muito passional, mas muito violento, pois o amor leva muitas pessoas a cometerem atrocidades. A se arriscarem. O elemento amor em minhas histórias não é evidente, fica escondido, debaixo do sangue dos parágrafos. Isto acontece no folhetim pulp, Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos. O personagem central, Edgar Wilson, apesar da frieza, é um sujeito que acredita no amor. Num dos capítulos do folhetim, aparece um homem que quer uma prova de amor de sua namorada antes de pedi-la em casamento. Combina de ser seqüestrado "de mentirinha", para ela ser forçada a pagar o resgate no valor exato do que tem no banco. Todas as suas economias ou a vida do futuro marido. Apesar do amigo de Edgar Wilson não gostar da idéia, Edgar se comove e diz: "__ Eu acho que este homem deve ter sua prova de amor". Saliento que Edgar Wilson havia tomado um fora da namorada que o trocou por outro. É um sujeito romântico, sem dúvida. E digo isso sério mesmo.
O GLOBO: Você lê autores da sua geração? Tem afinidades literárias com algum deles? O que acha da literatura brasileira atual?
ANA PAULA MAIA: Eu procuro ler sim os autores de minha geração. Tenho pouca afinidade com eles, porém, o Santiago Nazarian constrói parágrafos suculentos que não posso deixar de dizer, que sinto certa afinidade com ele. Seus textos possuem violência, porém num outro prisma. Quanto à literatura brasileira atual, acredito estar vivendo uma boa fase. Muitos autores e textos florescendo. Sou otimista quanto a esse cenário. Eu admito que entrei na literatura por acaso. Eu queria tocar blues. Não aprendi. Então comecei a escrever ouvindo blues e coisas parecidas. E meus textos vão ganhando um estilo pessoal aos poucos.
O GLOBO: De quem foi a decisão de divulgar o livro em clipes no youtube? Como isso foi feito?
ANA PAULA MAIA: Eu conheci em 2006 o trabalho do Fabz, um designer de Curitiba que tem um projeto bárbaro de fotosnovelas no site Crepúsculo. Alto nível. Eu já tinha até então pensado em fazer um trailler do livro, como forma de divulgação e de desdobramento da história. Escrevi um roteiro seqüência e mandei para ele. Ele a princípio não entendeu muito bem, mas expliquei a possibilidade disso dar certo. De se fazer um trailler, até porque este livro permite isso. Ele gostou e disse que faria o projeto nos padrões de suas fotonovelas. Logo em seguida eu assinei a publicação do romance com a Língua Geral e apresentei a idéia do trailler para exibição nos cinemas. Eles gostaram do projeto e compraram a idéia. O trailler vai para os cinemas. A cena que acontece no trailler não está no livro, mas poderia. Eu posso escrever dezenas de cenas que não estão no livro, porém são cenas do universo do livro. Daí a questão do desdobramento. Digamos que entre um capítulo e outro, aquilo que está no trailler aconteceu em algum momento da história com algum dos personagens, só que o leitor não sabe.
O GLOBO: Que artistas influenciam seus textos?
ANA PAULA MAIA: Hum... exatamente. Artistas e não só autores.
Neil Gaiman (especificamente as histórias de Sandman), Dave Mackean, Salinger, ZZTop, Universo Marvel, Luis Buñuel, Julio Verne, Platão (os diálogos), Shopenhauer, Nelson Rodrigues, Tarantino, Dostoiévski, Blues, Patrick MacCabe, os Titãs, John Fante, Creedence Clearwater Revival, Hemingway, Henry Miller, Russ Meyer, Graciliano Ramos (Angústia), Chuck Norris e Charles Bronson... entre muitos outros. Sou um produto de tudo isso. Dentro ou fora da literatura.
O GLOBO: Quando, e por que, você começou a escrever?
ANA PAULA MAIA: Comecei a escrever faz uns oito anos. E comecei porque eu tinha tido um princípio de estafa. Estava tomando remédios de tarja-preta. Eu surtei por algum motivo que nunca soube ao certo. Enquanto me recuperava, eu não podia fazer muita coisa, além de estar de férias da faculdade. Eu só tinha meu computador e algumas coisas me afetando a consciência além dos efeitos dos remédios. E por não ter nada para fazer, sentei diante do micro e comecei a escrever a história de um entregador de pizza, um triller. Um roteiro para curta-metragem. E a história não só saiu como foi produzida, porém nunca finalizada. Daí, eu nunca mais parei de escrever. Mas os remédios eu parei faz muitos anos. Palavra.
Comecei a escrever acidentalmente. E escrevo porque tenho muitos pesadelos. Meus pesadelos me mantêm escrevendo regularmente.
Março de 2007 - Portal Literal.
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Bruno Dorigatti | 01 / 03 / 2007 |
"O último [pesadelo] foi que eu estava com o Edgar Wilson, matando junto com ele. Olhei pra minha mão, eu estava de mãos dadas com alguém e o Edgard na minha frente, olhando pra lá. Quando eu vi era só um braço, sem corpo; aí acordei. São sonhos violentos que tenho. Escrevo porque tenho pesadelos, e também tenho pesadelos porque escrevo. Isso acaba me permeando também, me embrutecendo. Mas não quero escrever só isso, moro ali um tempo."
Agora ela estréia seu segundo folhetim. Barbudos cretinos e suas histórias canalhas – que caminha por um universo vizinho da história anterior, porém, com menos humor negro e ironia – narra a saga de operários e trabalhadores braçais, homens brutalizados, que quebram asfalto, recolhem o lixo e desentopem esgotos. Autora de O habitante das falhas subterrâneas (7Letras), publicado em 2003, Ana Paula escreveu o segundo romance em 2005. "Depois de finalizado, senti falta de escrever. Terminei de escrever o romance em abril, vai fazer dois anos que o livro está pronto. Nesse período, comecei a escrever o pulp, porque todo esse processo de procurar editora demora muito e precisava escoar a produção. Acabei escolhendo a internet porque é um meio direto e rápido", conta. E por que o gênero pulp? "Tive uma encomenda de uma editora italiana, Mondadori, que me deu a opção de escrever sobre violência, sexo ou drogas. Preferi escrever sobre violência – estava escrevendo A guerra dos bastardos na época, na metade – e parei para escrever esse conto. Ele acabou entrando na antologia de sexo, porque as outras duas ainda não saíram. A organizadora, Patrizia di Malta, conseguiu vender pro editor, porque tem uma cena de sexo, do cara enrabando o porco. E o cara comprou. O conto se chama "Não se deve meter em porcos que não te pertencem". Escrevi dois contos, o que chamo de episódio. Aí escrevi mais um, e fiquei curiosa para saber o retorno disso aqui no Brasil. Foi quando decidi dividir e fazer o folhetim. Comecei a dividir o material e coloquei na internet. A coisa do pulp acho que veio por causa da Patrizia, quando falou da antologia", lembra. Há diferenças entre o folhetim e o trabalho feito e pensado para ser impresso. "Para a internet, é um formato mais enxuto. A história pode até ser longa, mas os capítulos são mais enxutos", difere. Algo como um laboratório, talvez? "Olha, não utilizo como laboratório, eu produzo e publico simplesmente pela falta de demanda das editoras para publicar, acabo produzindo mais do que eles dão conta. Acredito na mídia eletrônica como um espaço onde as pessoas ainda vão ler ficção. Já se lê em blogs, daqui a pouco se começa a ler ficção com uma estrutura mais própria, enxuta, para a internet. É difícil colocar um romance imenso, com 200 laudas. Mas gosto do gênero novela – e não vejo muitas pessoas fazendo; fazem contos, crônicas – e acho ideal para isso. Aquela coisa do cotidiano do personagem, sem grandes acontecimentos, situações banais que gosto de descrever. A gente cresceu assistindo a séries, desenhos animados, telenovelas. Isso sempre esteve presente. Mas acho que é um gênero perdido, não sei se os editores aceitam publicar novelas." A Companhia das Letras vem reeditando as novelas de Sérgio Sant'Anna, lembro à Ana. "Mas só está publicando porque é o Sérgio Sant'Anna, como também fazem com o Fernando Sabino. Agora novos autores, é complicado, tenho visto romances e coletâneas de contos. Para não ficar esperando, pego esse caminho direto, escrevo e jogo no ar", completa. Só que tem um detalhe: "Sempre deixo alguns capítulos para serem negociados futuramente. Do primeiro folhetim, o final não foi ao ar ainda, tem lá um final temporário". E por que segurou o final? "Segurei porque teve interesse de um editor, para editarmos de modo eletrônico, mas não sei se vai rolar. Se não rolar, vou acabar publicando", explica Ana. O final guardado de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos trata do dia seguinte da viagem de Edgar Wilson. Essa viagem que o leva para A guerra dos bastardos, a ser lançado em abril próximo pela editora Língua Geral. "Essa é a conexão que existe. Só que o livro não trata do Edgar, ele é um dos personagens. A guerra... não tem protagonistas, mas uns 15 personagens mais evidentes. Edgard é um dos oito que mais aparecem." E os Barbudos cretinos e suas histórias canalhas? "Estava querendo escrever algo em janeiro deste ano e comecei a pensar em possibilidades de histórias, que tivesse um universo parecido ao do primeiro folhetim, com personagens vizinhos", conta. Ana já tem três capítulos prontos, e vai escrever mais um ou dois. Deve parar, por conta do romance e, depois do lançamento, retoma o trabalho com o folhetim, dividindo sua publicação em temporadas como as de seriados de TV. "Este folhetim novo teve um desdobramento complicado, está maior do que eu esperava. Ele é diferente do primeiro, que tem um humor negro, mais escancarado. Barbudos cretinos... tem uma coisa mais séria, mais pesada. Traz mais essa realidade brutalizante do trabalhador braçal." Como ela afirma na página principal do folhetim, "Barbudos cretinos e suas histórias canalhas narra a saga de operários e trabalhadores braçais. Homens brutalizados. Que quebram asfalto. Recolhem o lixo e desentopem esgotos. Toda a m**** de trabalho que nenhum de nós quer fazer, eles fazem. E ganham mal por isso". "A idéia de escrever um pulp é trabalhar com um universo que não olhamos muito, esse tipo que descarrega caminhão, que vira concreto, recolhe lixo, trabalha no esgoto, opera britadeira. Isso vai brutalizando, animalizando. É difícil ver uma lágrima rolar de uma pessoa dessas, não só homens, como também mulheres. Essas pessoas são tão calejadas, é outra realidade, que não está na novela nem na literatura em geral. São personagens muito secos, brutalizados, e o texto também é assim, seco, enxuto, não dá pra ficar divagando muito. São sujeitos que não têm muito tempo para pensar", vai contando. E de onde surgem, vêm estes bastardos, degenerados, cretinos, abatedores de porcos? "A guerra dos bastardos já é outra coisa. Tem quatro, cinco núcleos, e é um desenrolar. A história toda começa como uma situação, quando o Amadeu, um ator pornô, vai pedir dinheiro emprestado ao chefe dele e, naquele momento, se aproveita de uma situação que acontece naquele segundo, e isso muda a vida de todo mundo. Essa rápida decisão dá origem a história do livro, faz ela existir", adianta Ana Paula, que inspirou-se no visual da nova parceria entre Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, Grindhouse, para desenvolver a capa, junto com Rico Lins. "E bastardos porque não tem ninguém que preste, desde a velhinha até o esquartejador. Todos estão no mesmo patamar. As razões existem, não há uma brutalidade gratuita. Os bandidos são bonitos, falam bem e só matam quando é necessário. Trabalham cobrando dívidas de um agiota. Tem um ator pornô, dois caras que trabalham no cinema, lutador de boxe, personagens do cotidiano", descreve Ana. E a fixação pelo ator Chuck Norris, que aparece no primeiro folhetim, quando um personagem fala da sua relação afetiva com a fita do Braddock? "Chuck Norris e Charles Bronson povoaram a minha infância. Fui criada com irmão mais velho, e a gente tinha um acordo: como ele também não tinha muitos amigos, me acompanhava nas sessões de filme de terror, que eu tinha medo, e eu era obrigada a acompanhá-lo nas sessões desses filmes do Chuck Norris, Bruce Lee, Charles Bronson. São personagens influenciados por essas figuras que povoam os folhetins." Há ainda humor negro, acidez, sarcasmo e ironia em seus textos. "Acho que eu sou assim. Eu leio coisas muito diferentes do que estou escrevendo, ensaios, filosofia. Ontem estava lendo Espinosa, coisas que não têm influência direta naquilo que estou escrevendo, podem me trazer uma influência de idéias, de linguagem. Não cresci lendo Rubem Fonseca, nem leio hoje. Acho muito bom, mas li pouco, só dois – Agosto e Feliz ano novo –, e alguns contos esparsos. Li muito mais filosofia, teatro. Os diálogos de Platão, foi lá que aprendi a escrever diálogos. Gosto de Dostoiévski, acho pesado, mas engraçado também, de tão miserável, chego a rir. Os russos têm isso." Além dessa afinidade, tem o gosto pelos filmes de terror, filmes B, "os piores possíveis", resume. "Fui trazendo isso, e não que me faça bem. Tenho muitos pesadelos e tiro deles algumas idéias – se fosse colocar o pesadelo seria muito pior. Quando estava escrevendo A guerra dos bastardos parei três vezes, estava tendo muitos pesadelos. O último foi que eu estava com o Edgar Wilson, matando junto com ele. Olhei pra minha mão, eu estava de mão dada com alguém e o Edgard na minha frente, olhando pra lá, quando eu vi era só um braço, sem corpo, aí acordei. São sonhos violentos que tenho. Escrevo porque tenho pesadelos, e também tenho pesadelos porque escrevo. Isso acaba me permeando também, me embrutecendo. Mas não quero só escrever isso, moro ali um tempo", acrescenta, antes de mencionar o terceiro livro, que foge um pouco desse cardápio, apesar de carregar outro tipo de violência. Procurando projetos similares, quase não se acha muita coisa pela rede. "Você conhece algum?", pergunta Ana Paula. O jornal Rascunho, de Curitiba, publicou entre julho de 2005 e agosto de 2006 O inglês do cemitério dos ingleses, de Fernando Monteiro. Desde outubro passado, publica o folhetim Poeira: demônios e maldições, de Nelson Oliveira. O Estado de S. Paulo publicou no segundo semestre de 2006 O purga, de Mario Prata, Na internet, em blogs, há algumas experiências, como a de Ivana Arruda Leite, que se chamava "Eu não sou a mulher maravilha", e foi sumariamente deletado depois que escreveu o último capítulo. "Está bem guardadinho e talvez se torne um romance no futuro, quem sabe", conta Ivana. E ainda o Batom Borrado, que vem sendo "escrito e reescrito por Clotilde Tavares desde o ano de 1985, baseado em alguns fatos reais, outros tantos imaginários e outros ainda que não se sabe se foram uma coisa ou outra ou – quem sabe – as duas juntas", como conta autora na página do folhetim. Com os folhetins eletrônicos, o meio de atingir leitores é o ideal, rápido e eficiente. Esperemos por mais histórias que saibam se utilizar do formato. |
Paralelos - O globo / 2006
Por Mariel Reis
Link do artigo original AQUI
A novela protagonizada por Edgar Wilson é marcada por uma simbologia do fogo. E logo no inicio a saga de presença deste elemento purificador e deformante é notada ao se qualificar "a sexta-feira" como "quente e abafada". Outros sinais de sua presença alastram-se pelo texto. O subúrbio "quente e abafado" acentua o crescendo da labareda de ódio e ignomínia que dominará as linhas seguintes de uma ponta a outra.
Edgar Wilson é um matador de porcos. Tanto dos animais quanto daqueles que se assemelham a eles "o problema dos porcos é que eles acham que são gente" afirma a certa altura dos acontecimentos, e arrisca "Eles te olham e acham que você é um deles ou vice-versa". Com esta exposição, a moral do personagem justificará o desossamento de algumas vicissitudes humanas como a inveja, a ira e a cobiça. Demônios encerrados nos animais que o próprio Edgar abate como que lhes propiciando a libertação, como na parte do Evangelho aludida por ele "Jesus era pastor de ovelhas, mas quando a coisa fedeu, foram os porcos que entraram em ação" argumenta. Baseado neste intricado sistema moral, ela assassina Pedro e o atira para os porcos que somem com qualquer vestígio.
A referência a este Pedro traidor, aquele que negou por três vezes o Salvador não é gratuita "Pra quê se colocar ansioso se isso não acrescenta nem um côvado em altura, nem torna um fio de cabelo preto em branco?" Edgar se coloca a questão para continuar sem resposta, vivendo naquilo que se parece uma ante-sala do inferno sempre repleta de sangue e ódio. A ira dos cães de rinha é mais uma inversão que qualifica todo o texto que leva como subtítulo "uma estória sobre a simplicidade humana". Ampliando as pistas sobre o universo deste homem que segue uma espécie de messianismo todo próprio, resgatando o rim de um amigo ou ajudando a outro a obter a sua prova amorosa. O problema é a fatalidade que se intromete a todo instante no caminho da personagem. "A felicidade não é deste mundo", parece ouvir ao constatar a fragilidade das emoções vivenciadas em todo o percurso, em toda a sua via-crucis.
E o exorcismo dessas desventuras parece chegar quando, mesmo embaçado por dentro, mesmo sentindo-se no quinto dos infernos, aparece aquele que poderá redimi-lo. No concurso "Porco Abatido", promovido pelo Açougue Maminha do Rei, outro gladiador surge no terreno sem lei daquelas paragens. "Ele abate trinta porcos em uma hora", enquanto que sua marca é "quinze animais em uma hora". Edgar Wilson, este homem duplo, encarna a extremidade daquilo chamado de simplicidade no subtítulo da estória. O vermelho, coloração incendiária da moral do personagem se impõe uma vez mais e ele acaba por vencer o concurso.
Há cores naturalistas na pintura de Ana Paula Maia dos personagens, e um certo absurdo atravessa as motivações seguidas por cada uma delas no transcurso da estória. Sente-se falta da relativização das ações das personagens que as aproximariam muito do leitor, somando alguma poesia a ingenuidade com que praticam determinadas atrocidades como o resgate do rim de Gerson, praticado com um canivete por Edgar que ignora completamente a anatomia humana, mas por força quer compará-la à suína numa sugestão da queda da nossa condição de animais celestes para estes que pendurados de ponta a cabeça
Site Aguarras - Junho / 2006
Link do artigo original AQUI
Ana Paula Maia e a literatura das entranhas
Não espere nada superficial de Ana Paula Maia. A escritora descobriu-se nas entranhas humanas e tem desbravado rins e intestinos desde então. Quando li O habitante das falhas subterrâneas, seu primeiro romance, tive que lidar com a irritação causada por Ariel. Só continuei a enfrentá-lo e virar as páginas porque o personagem imaginava ter um tumor na cabeça. As estranhezas me comovem. Também já achei que tinha um tumor na cabeça, todo maluco já achou. Os seus demais textos também causam essa mistura de repulsa e cumplicidade.
Desde o primeiro romance, Ana Paula participou de antologias de contos e microcontos e mergulhou de cabeça em A guerra dos bastardos. Ela trabalhava no romance quando foi convidada por uma agente italiana a participar de Sex’n’Bossa, um livro de contos eróticos de autores brasileiros. O conto tem o nome sugestivo de Não se deve meter em porcos que não te pertencem e foi seguido de Até os cães devoram os próprios donos com lágrimas nos olhos. Esse foi o berço de Edgar Wilson, um abrutalhado que mata porcos e os leva para frigoríficos. Ele mexe com tripas como quem arruma a casa e não tem pudores de transar com cadáveres suínos.
Ana Paula Maia
O personagem se desenvolveu. Acabou ganhando um folhetim de 12 capítulos publicado na internet sob o nome de Entre rinhas de cachorro e porcos abatidos, uma dessas histórias com cara de HQ adulto com sangue, sexo, e prazer e dor a gosto do freguês. O escrúpulo dos personagens é regido por uma lei própria, limiar à nossa. O matadouro improvisado de Edgar agora é chamado de oficina e seu machado de corte não se incomoda de igualar as tripas humanas às animais. Os guinchos de um porco de costelas expostas têm a mesma dignidade do choro de traidores quando recebem a primeira machadada na orelha.
“Edgar Wilson sofre de um raro tipo de aversão irracional, desproporcional, mórbida e persistente à galinhas. Ele se envergonha muito e guarda isso em segredo.
Pedro segura o porco firmemente, enquanto Edgar Wilson apanha o machado. ‘Não deixe escapulir novamente’, resmunga Edgar, que acende um cigarro, para logo em seguida suspender o machado”. - Entre rinhas de cachorro e porcos abatidos
Procurando mais espaço, Edgar Wilson acabou entrando para o time de A guerra dos bastardos. Quem quiser ter um gosto da história pode ler o conto Teu sangue em meus sapatos engraxados no livro Contos sobre tela ou espiar o folhetim no blog da autora.
“Um suave tilintar de sininhos angelicais permeava à sua volta acompanhado de um forte odor férrico. Ao acordar, uma cavidade rasgada em seu antebraço, os dentinhos cravados na carne até os ossos, lambuzada de sangue morno, os olhinhos brilhando no princípio das trevas; fezes, sangue e saliva dentro da ferida exposta com as veias arrebentadas e corroídas fluindo através da garganta de Rasputin.” - A guerra dos bastardos
Ana Paula diz que o novo romance nada tem a ver com O habitante das falhas subterrâneas, por isso é difícil prever reações e recepção. É uma história longa, que exige dedicação extra para seguir os acontecimentos. Novamente, aposta nos personagens masculinos, os tais bastardos do título. Pelo que pôde ser visto até agora, será um novo mergulho no lado sombrio do ser humano. Sombrio não só porque tudo é possível.